original: a Mozilla e seu adestramento de comunidade

15 julho 2007

Taí o original da matéria publicada no especial de 10 anos do Now! sobre o modelo de negócios da Mozilla baseado na comunidade. As edições finais foram poucas (a chefia foi bem generosa) – a principal ausência é o bloco que compara diretamente a Mozilla com a Microsoft.

Só avisando: o texto é grande. Mas nada na vida é muito fácil de qualquer maneira. Tá em Creative Commons, logo,você já sabe o que fazer, né?

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comunidade_firefox

Asa Dotzler invade esbaforido o hotel em que está hospedado em São Paulo com duas mochilas nas costas e, ofegando, se desculpa pelo atraso no encontro enquanto um trio toca versões em jazz de sucessos da bossa nova no bar colado ao hall.São 21h30 da noite de uma terça-feira, último dia em que o evangelizador/evangelista do navegador de código aberto Firefox ficará no país.

Dotzler vem de uma viagem ao interior de São Paulo que reflete muito bem o espírito da comunidade que alçou o espólio do primeiro grande navegador da internet ao fantasma que puxa o pé da Microsoft em seu monopólio no atual mercado de navegadores.

Na noite anterior, Dotzler e JT Batson, membro da equipe de marketing da funação que acompanha o evangelista, deveriam ter ganho uma carona até Campinas, a 100 quilômetros da capital, onde fariam uma palestra para estudantes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) por um membro da comunidade que mora em São Carlos, também no interior.

A carona não apareceu. Na hora combinada para a segunda tentativa de entrevista, no almoço do mesmo dia, Dotzler e Batson, entre pedidos envergonhados de desculpa, pediam para cancelar o encontro para que pudessem se achar na cidade de São Paulo e tomassem um ônibus até a Estação do Tietê, onde tomariam uma condução intermunicipal para Campinas.

Foi difícil não esconder a surpresa: o responsável por orquestrar a comunidade mesclada por engenheiros, geek e entusiastas nada técnicos que roubou nada menos que 15% de participação do monopólio detido pela gigante Microsoft entre navegadores desbravaria o Brasil em um ônibus.

Na linha do tempo oficial, quem “reciclou” o código-fonte do Netscape Communicator em um novo browser mais seguro, rápido e fácil de usar que o então dominante Internet Explorer, da Microsoft, Blake Ross.

Meses após a Netscape colocar o código-fonte disponível do Communicator online, a América Online arrematou a Netscape por 4,2 bilhões de dólares e, ao escolher o IE como browser oficial do provedor, colocou a última pá de cal no entusiasmo de fãs do navegador.

Prestes a entrar em Standford, o estudante de 15 anos se juntou ao amigo Dave Hyatt e apresentou à comunidade, até então reduzida a programadores e entusiastas orfãos do Netscape, seu projeto.

Em 2002, chegava à internet o Phoenix 0.1, navegador de código aberto que usava a interface gráfica Gecko e, segundo admitiu Rossa na época, seria tão fácil que até seus pais poderiam usar sem problema. Por problemas jurídicos, o software mudou de nome para Firebird e, finalmente, para Firefox.

É aí que entra Dotzler. Com um cérebro assumidamente incapaz de programar, como ele mesmo define, percebeu que poderia ajudar a melhorar o software que tanto admirava apenas reportando falhas para os engenheiros, que corrigiram as falhas.

Em 1998, quando a primeira versão no Netscape bolada pela comunidade chegava à web, ele era um dos únicos a assumir a tarefa.“Comecei a ajudar outras pessoas que queriam ajudar a enviar avisos de falha no formato exigido pelos engenheiros. Um dia, percebi cerca de 10 mil pessoas baixavam e reportavam falhas diariamente e ganhei muito do crédito por isto”, relembra Dotzler.

“Antes da Mozilla, nenhum projeto de código aberto imaginava que poderia envolver o comprometimento de uma grande comunidade – era coisa apenas de engenheiros trabalhando juntos”, afirma com um orgulho evidente no rosto. “Abrimos as portas para qualquer um que queira ajudar. Foi ali o começo da comunidade Firefox”.

Foi ali, também, o início da escalada do Firefox contra o Internet Explorer que congregaria mais de 100 milhões de usuários em cinco anos e daria à Microsoft uma sensação até então inédita: perder participação em um monopólio seu.

A atuação característica da Microsoft em mercados onde ainda não atua lhe rendeu o bem-humorado e ácido apelido de Júnior Baiano, o famoso zagueiro brucutu da Seleção Brasileira: chega atrasado, mas nunca perde a viagem.

Que o digam o sistema operacional da Apple no final da década de 80, quando o Windows começou a esboçar sua atual dominação nos desktops, ou o ICQ, precursor das mensagens instantâneas soterrado pela presença opressora do MSN Messenger.

E, por que não, o Netscape Communicator 4? Em uma decisão inédita, a Justiça norte-americana ordenou que a Microsoft fosse dividida em duas – uma responsável por sistemas operacionais e outra por navegadores – após considerar a gigante de software culpada em uma ação por truste conduzida em 2000. Dois anos depois, a participação do Internet Explorer no setor atingia 96%, segundo dados da OneStat.

Segundo os dados oficias da Mozilla, o Firefox conta com participação mundial de 16% do mercado de navegadores. Com seus 3,5 milhões de usuários, o Brasil está um pouco abaixo disto (13%), enquanto países desenvolvidos, como Noruega e Dinamarca, chegam a atingir metade do mercado.

O rival da Microsoft ainda está longe – dados da NetApplications relativos a junho apontam que o Internet Explorer representa 79% do mercado. Dotzler vê com bons olhos o crescimento “estável e linear” do Firefox como um grande mérito, ainda mais com o cenário enfrentado.

“Estamos enfrentando a maior empresa de software de mundo que tem recursos ilimitados, mais de oito mil funcionários e podem se vangloriar de gastar meio bilhão de dólares em um mês para o marketing de Vista”, ataca.

“Em qual setor de tecnologia o monopólio da Microsoft já foi roubado? Nenhum. Se tiramos participação deles, nem que seja meio ponto percentual por mês, eu não ligo, já que estaremos tendo sucesso”.

A relação fica ainda mais intrincada por a Microsoft ter integrado ao seu Internet Explorer 7 funções que já faziam sucesso na primeira versão do browser de código aberto, como navegação por abas e bloqueio automático de pop-ups.

“Quando (a Microsoft) nos copia, isto é um tributo ao nosso trabalho e a outros navegadores que vieram antes. Acho ótimo ser o líder de inovação em um setor com a participação da Microsoft”, cutuca, com uma sinceridade nada corporativa, o evangelista.

Na luta pela popularização do seu navegador, porém, a Mozilla já tem mais que apenas os 12 funcionários empregados na época em que a versão 1.0 chegou à internet, sustentado basicamente por doações da comunidade – atualmente, são cerca de 100 funcionários.

Do lado da Mozilla está o principal antagonista da Microsoft na internet: o Google.

Apontado como a empresa que está fazendo a atual empresa de Bill Gates sucumbir como a IBM dos anos 80, o buscador não apenas paga ao Firefox pelo uso do seu sistema de busca no browser (assim como também faz o Yahoo e outros), mas também ajuda a distribuir o software pelo Google Pack.

“Toda evolução acontece. Agora, é vez da internet. Relaciono sucesso pela maneira como uma empresa se assemelha com a web e o Google trabalha exatamente como a internet. O Google é a Microsoft da vez”, resume.

Eu, comunidade
Mesmo com as contribuições (Dotzler se apressa em esclarecer que o pagamento começou a vir bem depois da decisão de usar os sistemas de busca), a Mozilla está longe de alcançar a verba milionária e as dezenas de engenheiros da Microsoft. E é aí que entra a definição de Dotzler, repetida exaustivamente, sobre o funcionamento da Mozilla parecer com a internet.

Enquanto a MSDN exige o pagamento anual para que programadores tenham acesso a cópias de testes de softwares, a comunidade Firefox não exige matrículas, pré-requisitos ou habilidades pontuais.

Por mais que uma pequena equipe coordene o desenvolvimento, a programação e os testes de cada nova versão do Firefox são distribuídas entre seus 500 mil programadores e beta testers espalhados pelo mundo. Além de ágil, o processo não depende exclusivamente de um figurão que, impossibilitado de participar, atrasa o cronograma do projeto.

O processo se mostra mais seguro: ao invés de divulgar correções de segurança com um prazo fechado (como a Microsoft faz com seu pacote mensal de atualizações conhecido como Patch Tuesday), a própria comunidade se mobiliza para corrigir brechas de segurança e divulgar pacotes de correção (com o aval da Mozilla) o quanto antes.

Ao invés de restritas, todas as mudanças e propostas de alterações são públicas e passíveis de debates nas listas de discussão e wikis mantidas pela Mozilla para que a comunidade participe.

Versões de testes são oferecidas em servidores FTP abertos e não há qualquer mistério de marketing quanto ao lançamento dos próximos softwares: além do roadmap público, a Mozilla já oferece, por exemplo, as primeiras versões do Firefox 3, programado apenas para final do ano.

Para explicar melhor a motivação do meio milhão da legião de seguidores da Mozilla, Dotzler fala sobre os problemas que teve quando o taxista responsável por levá-los à Unicamp indicou um prédio no campus que seria o final da viajem. Não era.

Perdidos pela Unicamp e atrasados, Dotzler e Batson caminharam pela universidade até encontrar um aluno – ironicamente, estudante de engenharia e fã do navegador. Por meio de um espanhol precário, o grupo achou a sala do encontro vazia, sem qualquer estrutura e sem o professor que deveria lhe receber.

Lá vai o engenheiro novamente buscar contatos na faculdade mais próxima e, após alguns minutos, localizar o professor, que os recebe afirmando que o encontro havia sido marcado com meia hora de antecedência para que o trio conversasse com calma.

Quase 20 horas após perder sua carona, a própria comunidade havia localizado a dupla em uma cidade do interior de São Paulo a tempo de encontrar dezenas de outros entusiastas.

“É sempre assim. Quando estive em Paris com minha mulher, um estranho reconheceu minha camiseta com o logo do Firefox e veio gritando do outro lado da rua. Falei que era da fundação e ele me apontou diversos lugares que estava há horas procurando”, relembra Dotzler. “Depois, simplesmente foi embora sem falar seu nome”.

Numa espécie de (SAC) serviço avançadíssimo ao consumidor, a Mozilla se define essencialmente não como um projeto fechado, mas como uma irmandade: reconhece-se os irmãos e todos, por meios bastante diferentes, são movidos pelo mesmo entusiasmo, algo o Dotzler define como “salvar a web”.

“Sempre que você fecha uma aba sem querer ou o navegador fecha por um problema sem que você tenha salvado seu trabalho, isto machuca a internet”, fala Dotzler, usando uma exagerada figura de linguagem. “Se você quiser se identificar como da Mozilla e levar CDs para uma LAN house, faça. Vocês são da Mozilla”, diz, em em incentivo à militância digital.

Ao invés de reuniões fechadas com grupos de desenvolvedores certificados e anteriormente autenticados pela companhia, as reuniões feitas por Dotzler e Batson são marcadas por “um caos domesticado”: não há inscrições nem lugares marcados e as portas estão abertas para quem quiser entrar e contribuir com qualquer idéia.

Com uma verba de marketing restrita às viagens que fazem para conhecer aspectos regionais de cada país onde o Firefox avança, a divulgação planejada em cada uma destas reuniões globais recai sempre nas costas dos engenheiros ou entusiastas.

Foi assim, por exemplo, que a Fundação Mozilla estampou duas páginas inteiras do tradicional The New York Times no dia do lançamento do Firefox 1.0, em 2004. Segundo Asa, a meta inicial de coletar 100 mil dólares para a empreitada foi dobrada em três semanas graças à contribuição da comunidade pelo site SpreadFirefox.

Como retribuição, o nome dos 50 mil membros que participaram da doação foram estampados no anúncio, formando o logo do navegador com o panda vermelho circundando o globo terrestre em preto e branco.

É pelas mãos da comunidade também que o Firefox ganha passeatas com jovens fantasiadas em Tóquio, uma grande reprodução do seu logo em uma plantação em Oregon ou que quase 100 mil de blogueiros estampam os banners do navegador em seus diários na tentativa de convencer seus leitores.

Na noite anterior à entrevista, cerca de quinze pessoas bolavam estratégias para incentivar a adoção do Firefox no mercado brasileiro. Eram Dotzler e Batson que organizavam o encontro listando possíveis melhorias do suporte do navegador no Brasil ou ações de marketing improvisado, distribuindo as tarefas conforma o interesse de cada um dos presentes.

Na pauta, distribuições de CDs em regiões de venda de eletrônicos, fabricação e distribuição local de camisetas da Mozilla, concursos de grafitti e até mesmo práticas de marketing de guerrilha em programas de TV para aumentar o apelo do navegador entre os brasileiros.

Dotzler metralha os desenvolvedores com questões sobre maneiras de atingir o usuário médio brasileiro e fazendo piadas claramente inspiradas no estilo de vida norte-americano (“imagina pintar o logo do Firefox no corpo e sair correndo pelado em um jogo de futebol?”, brinca) e vai conseguindo respostas aos poucos. No fim, parece satisfeito pelas respostas que obteve. Colocá-las em prática, porém, é outro assunto.

O próprio desfecho para o comprometimento da comunidade passa longe dos coquetéis com grandes executivos ou brindes corporativos que povoam eventos para clientes.

“Muitas pessoas fizeram o Firefox e, se eu posso passar um tempo felicitando todas, ótimo. Se não rolar, você trabalha duro e pode achar que ninguém liga pra você se não há, no mínimo, alguém para dizer obrigado”.

A abordagem exageradamente humana integra uma visão de mercado da Mozilla que Dotzler sintetiza, junto à comparação com a internet, com um batido ditado nascido muito antes da grande rede.

“Estamos felizes em perder controle e deixar pessoas felizes com esta responsabilidade. Gostamos do caos. Diz o ditado que duas cabeças funcionam melhor que uma”. Imagine, então, 500 mil cabeças.

2 Responses to “original: a Mozilla e seu adestramento de comunidade”


  1. […] é bem isto: alguns ajudam reportando bugs, outros aplicam a tatuagem temporária do Firefox na testa. Literalmente. Posted by gfelitti […]


  2. […] aquela história do Firefox ganhar mercado baseado na brodagem da Mozilla com outras empresas/usuários? Taí outro exemplo – o Pingdom oferece um ano de graça […]


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